1. Um computador chamado Satã

 - Quando foi que sua vida se tornou um loop?

Já era de madrugada, mais uma noite virada em frente à Satã, trancado dentro daquele quarto escuro que pouco se iluminava pelo monitor e pelas luzes vermelhas que saiam de Satã. Uma postagem no 4chan me fazia essa pergunta. Na seção de comentários nada de importante, somente algumas pessoas se lamentando. Mas aquela pergunta havia se aprofundado em minha mente. Desde que essa loucura começou, venho evitado sair de casa, indo somente em situações como o trabalho, e agora com a demissão em massa que me atingiu, não tenho feito muitas coisas além de ficar o dia todo trancado em meu quarto, desperdiçando todo meu tempo acessando fóruns anônimos, batendo punheta e vendo anime. A única companhia que tinha era a de Satã. Sinceramente, já não me importava tanto com o rumo que minha vida vem tomando, preferia ficar aqui, com pessoas que são como eu do que ser igual a todo o resto do mundo que se preocupa com essas merdas que vem acontecendo.

Levanto da cadeira e vou em busca de algo para comer. No armário da cozinha, havia somente um pote de cup noodles, fazia tempo que não saia para comprar mantimentos. Pego uma garrafa térmica em que deixo água quente e espero aqueles 3 minutos, depois, sigo meu caminho para o quarto. De volta ao meu local, ouço meu celular vibrar, mais uma ligação, apenas desligo e coloco o aparelho em modo silencioso. Nunca foi meu forte falar com pessoas e não me faz falta alguma, ninguém que chamava de amigo me procura ou me liga também, e depois que minha mãe morreu, parece que não tenho mais a obrigação de atender uma ligação que seja também, sei que seria algum telemarketing ou cobranças.

Depois dessa interrupção, lá estava eu de volta a minha rotina: ingerir sódio enquanto passeava de thread em thread.

Enquanto uma mão escrolava com o mouse, a outra segurava um garfo que usava para levar de vez em quando um punhado de cup noodles até minha boca. Até que acabo sem perceber, mordendo o garfo vazio. Merda. Ia ter que comprar mais desses, pelo menos se quisesse continuar vivo. Respiro fundo, será somente uma caminhada até a kombini que fica no mesmo quarteirão, desde que os asiáticos começaram a vir em massa, esse tipo de loja tem se tornado comum por aqui, apesar das ruas não serem seguras como as da Ásia, ainda era bom poder comprar qualquer coisa a hora que quisesse.

Seria uma saída rápida, Satã ficaria bem se eu voltasse logo.

Pego minhas chaves e saio de casa, caminho um pouco pelo beco aonde morava e lá estava eu na rua, fazia frio, mas era agradável. Na rua, havia somente alguns carros estacionados e aqueles cartazes de propaganda que trocavam periodicamente de imagem em japonês e coreano mal iluminados pelos postes com defeitos. Isso fazia eu me sentir a única pessoa do mundo. Depois de caminhar por um tempo, chego à 7-Eleven que ficava no bairro. As portas automáticas se abrem, o atendente fala algo que nem havia escutado direito e lá estava eu dentro da loja. Tocava K-POP, o que fazia todo esse passeio parecer ter sido em vão. Pego uma cesta que ficava na entrada da loja e sigo direto para o freezer, retiro algumas latas de coca-cola e vou para a prateleira do corredor central em busca do meu querido macarrão instantâneo. Pego 6 potes de cup noodles e sigo para o caixa, queria sair o quanto antes dali, aquela maldita música estava martelando minha cabeça. Não dava pra entender porra nenhuma dela, exceto quando cantavam em inglês, poucas vezes:

 -Cheer up baby
 -Shy Shy Shy

E lá estava eu, de volta ao caixa, uma garota havia aparecido na kombini, ela vasculhava uma espécie de caixa que continha o que parecia ser discos.
Ela me olhava meio estranho enquanto o atendente passava no caixa minhas compras. Talvez fosse pela minha aparência horrível de quem passava dias sem dormir, meu cabelo bagunçado, a minha camiseta de uma banda aleatória de rock toda amassada, manchada de refrigerante e porra, ou aquela minha feição de quem não queria estar ali.

Aquele jeito dela, me incomodava.

Enquanto estava ali distraído tentando não fazer com que aquela música irritante explodisse minha cabeça ela começa a falar:
 -Não gosta disso, não é?
 -O quê?
 -Da música. E com razão, K-POP é mesmo uma merda - Responde ela enquanto balançava a cabeça e cantarolava algo.

 - Cheer up baby

Eu apenas fico quieto enquanto ela continua a buscar algo naquele monte de CDs velhos:
 -Bom mesmo é isso aqui - diz ela enquanto retira da caixa um CD, na capa, havia um homem de cabelos brancos, sem camisa, ele parecia se apoiar com os braços em algo e tentava fazer uma cara de mal ao lado do nome do álbum: Rebell Yell. Parecia até ser uma versão masculina da garota.
 -Não se tem ouvido tanta música desse tipo hoje em dia, acho que deve até estar se tornando ilegal - Continua a garota com um uma risadinha irônica.
Enquanto ela fala, o atendente interrompe a nossa conversa, aonde só ela dialogava:
 - 31, 76. Como vai pagar?
 - Bitcoin. - Respondo, enquanto ele pega uma espécie de tablet que continha um QR CODE.

Depois que a Nova Coreia surgiu, o dólar passou a se tornar muito instável devido a moeda asiática, e começou uma corrida para ver qual se tornaria o padrão mundial. No final, não contavam que moedas digitais vieram para ficar e Bitcoin seria o padrão. Claro, o governo apesar de não gostar e promover sua própria moeda, conseguiu um jeito de taxar e rastreá-la, mas isso não impediu que surgissem outras. Enquanto retiro meu celular do bolso, a garota arrasta pelo balcão aquele CD do Billy Idol até mim:
 - Deveria levar, isso é um verdadeiro achado, além de ser música realmente boa.

Apenas ignoro, não iria gastar meu dinheiro atoa só para agradar uma garota que eu não conseguiria comer nem se tentasse. Ela era verdadeiramente linda, com aquele seu corte de cabelo masculino tingidos de verde e se misturando com o preto natural dele. Vestia uma camiseta larga com estampa de duas demônios nuas, um short vulgarmente curto, meia calça e calçando coturnos. Parece que ela havia acabado de voltar de um show de rock ou algo do tipo. Mas não, não valeria a pena.

 -Shy Shy Shy
Porra, havia perdido algum tempo pensando na oferta da garota, pego minha sacola de compras e sigo de volta para casa. Provavelmente era funcionária da 7-Eleven e estava lá para empurrar produtos.

Retornando ao conforto de casa e da companhia de Satã, o resto da minha noite seria navegar no 4chan até que pegasse no sono. Parecia que a rotina planejada seria perfeita, até que a merda da música que tocava na kombini toca em minha mente, aquela porcaria ficou grudada na minha cabeça e com o retorno dela, volta o acontecido com a garota de cabelos curtos. Devia ter pego aquele CD, sei que devia. Talvez se eu voltasse na loja, quem sabe, ela poderia estar lá ainda. Não. Com certeza ela já deve ter ido embora. Comprar uma mídia pré-histórica seria como queimar meu dinheiro, e não valeria a pena só pra agradar um rosto bonito. Bom, posso baixá-lo, além de muito mais fácil do que usar um CD, ainda posso ter essa músicas no meu celular. Seria isso, iria baixar o álbum e escutá-lo.

Abro o Soulseek. Gosto mesmo da sensação de ter as músicas para mim, de baixar as discografias completas e ouvir álbum por álbum. Fora que não tenho o costume de ouvir muita coisa, o barulho que Satã fazia já era um bom barulho de fundo para mim enquanto navegava, e se ficasse enjoado, sempre havia sugestões no 4chan, embora o tipo de música pareça ser completamente diferente do que a garota me mostrou. Já havia ouvido falar desse Billy Idol, o nome não me era estranho, mas aparentemente nunca o escutei. Na barra de pesquisa do Soulseek pesquiso pelo nome do cantor, alguns segundos depois Satã me mostra sua discografia. Seleciono-o e o download se inicia. Seria só questão de minutos até que pudesse ouvir as musicas que essa garota curte.

De repente, me pego acordando sobre a mesa entre bolinhas de papel higiênicos e embalagens de miojo e coca-cola. Havia pego no sono enquanto esperava as músicas baixarem. Satã me diz que eram 14:36, por nunca estar acordado de dia nunca havia reparado na bagunça. Meu Deus, eu vivo mesmo nesse chiqueiro? Pilhas de lixo se acumulavam pelo chão, minha cama estava repleta de roupas sujas. A luz do sol entrava pela janela que havia esquecido aberta à noite batia em meu rosto, atrapalhando minha visão, levanto até ela e fecho as cortinas, aquela iluminação amarelada sai do meu quarto, voltando ao seu clima escuro. Após voltar a iluminação natural de Satã, pego uma cartela de rivotril e coloco 3 comprimidos de uma vez na boca, chacoalho garrafa por garrafa de refrigerante na minha mesa até encontrar alguma que ainda tinha algum liquido e viro garganta abaixo ao achar. Em minha cabeça, começa a se passar ordens para que eu arrumasse a bagunça. É isto, Iria limpar meu quarto hoje, mas é claro, isso se passa só em mente. Enquanto planejava ser ativo em minha cabeça, meu corpo já estava sentado em frente a Satã, dessa vez, abrindo as músicas daquela garota.